Recebi o texto abaixo do jornalista José San Martin. Trata-se de um artigo do filósofo-cronista-teológo-psicanalista Rubem Alves onde aborda a questão da eutanásia. Como diria Reinaldo Azevedo, volto depois.
EUTANÁSIA
Rubem Alves
“Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música”
SEMPRE QUE SE FALA EM EUTANÁSIA, os seus opositores invocam razões éticas e teológicas. Dizem que a vida é dada por Deus e que, portanto, somente Deus tem o direito de tirá-la. Eutanásia é matar uma pessoa e há um mandamento que proíbe isso. Assim, em nome de princípios universais, permite-se que uma pessoa morra em meio ao maior sofrimento.
Pois eu afirmo: sou a favor da eutanásia por motivos éticos. Albert Camus, numa frase bem curta, disse que, se ele fosse escrever um livro sobre ética, 99 páginas estariam em branco e na última página estaria escrito “amor”. Todos os princípios éticos que possam ser inventados por teólogos e filósofos caem por terra diante dessa pequena palavra: “amar”. Deus é amor.
O amor, segundo os textos sagrados, é fazer aos outros aquilo que desejaríamos que fosse feito conosco, numa situação semelhante. Amo os cães e já tive dezenas. Muitos deles eu mesmo levei ao veterinário para que lhes fosse dado o alívio para o seu sofrimento. Fiz isso porque os amava, eram meus amigos, queria o bem deles. E eu gostaria que fizessem o mesmo comigo, se estivesse na situação de sofrimento deles.
Defender a vida a todo custo! De acordo. É a filosofia de Albert Schweitzer e a filosofia de Mahatma Gandhi: reverência pela vida. Tudo o que vive é sagrado e deve ser protegido. Mas, o que é a vida? Um materialismo científico grosseiro define a vida em função de batidas cardíacas e ondas cerebrais. Mas será isso que é vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da vida. Vejo as crianças brincando: elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando: eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso, todos os esforços devem ser feitos.
Mas eu pergunto: a vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente num galho: tão linda, tão vermelha. Mas o tempo chega quando ela quer morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite, ela está cansada. Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse quando o seu corpo quer dormir.
A vida não pode ser medida por batidas e coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso. Admitamos, para efeito de argumentação, que a vida é dada por Deus e que somente Deus tem o direito de tirá-la. Qualquer intervenção mecânica ou química que tenha por objetivo fazer com que a vida dê o seu acorde final seria pecado, assassinato.
Vamos levar o argumento à suas últimas conseqüências: se Deus é o senhor da vida e também o senhor da morte, qualquer coisa que se faça para impedir a morte, que aconteceria inevitavelmente, se o corpo fosse entregue à vontade de Deus, sem os artifícios humanos para prolongá-la, seriam também uma transgressão da vontade divina. Tirar a vida artificialmente seria tão pecaminoso quanto impedir a morte artificialmente, porque se trata de intromissões dos homens na ordem natural das coisas determinada por Deus.
A vida, esgotada a alegria, deseja morrer. O que eu desejo para mim é que as pessoas que me amam me amem do jeito como eu amo os meus cachorros.
Fim
Voltei!
Como disse, Rubem Alves é cronista e como cronista é um excelente contador de estórias. E como teólogo é um grande poeta. Ele sabe brincar com as palavras, isso reconheço. Em verdade ele é um dos maiores contistas da atualidade no Brasil. Poucos escritores possuem a sensibilidade para perlustrar a alma humana tal qual Rubem Alves.
Como se sabe, Rubem Alves já foi pastor presbiteriano, e após uma crise de fé decorrente de problemas na saúde da família, abondou o pastoreio. Atualmente é crítico ferrenho da religião organizada, e persona non grata na Igreja Presbiteriana do Brasil em virtude de suas posições liberais e anticlericais.
Voltando ao texto, percebe-se que Rubem Alves reconhece de forma categórica que Deus é o Senhor da vida. Com efeito, seu principal argumento em favor da eutanásia tem como fulcro o pressuposto de que somente Deus pode dar e retirar a vida, e, fora disso, seria caso de assassinato. Assim, o cronista declara:
“Vamos levar o argumento à suas últimas conseqüências: se Deus é o senhor da vida e também o senhor da morte, qualquer coisa que se faça para impedir a morte, que aconteceria inevitavelmente, se o corpo fosse entregue à vontade de Deus, sem os artifícios humanos para prolongá-la, seriam também uma transgressão da vontade divina. Tirar a vida artificialmente seria tão pecaminoso quanto impedir a morte artificialmente, porque se trata de intromissões dos homens na ordem natural das coisas determinada por Deus”.
Rubem Alves – filósofo que é – lança mão do recurso da lógica. Num raciocínio inverso ele tenta demonstrar que prolongar a vida de maneira artificial é tão pecaminoso quanto tirá-la, pois que isso seria contra a vontade de Deus.
Apesar da aparência de verdade o raciocínio pró-eutanásia do cronista é fisgado pela sua própria lógica, senão vejamos:
Rubem Alves leva o argumento à suas últimas conseqüências. Assim, se tomarmos emprestado a sua forma de raciocínio e levarmos em consideração que “prolongar a vida de maneira artificial é algo pecaminoso“, então, pode-se concluir que todo e qualquer medicamente produzido articialmente para promover a saúde humana é algo pecaminoso, porque se trata de intromissões dos homens na ordem natural das coisas determinada por Deus.
Na esteira desse pensamento, poder-se-ia dizer que os remédios produzidos contra o câncer, a AIDS, e outras doenças maléficas, são, em verdade, equívocos da parte do homem, na medida em que estaria mantendo em vida pessoas que estavam destinadas à morte, por determinação de Deus. Portanto, fechem os hospitais, as farmácias e acabem com as profissões da área da saúde!
Tudo isso é um grande absurdo, mas é o resultado do raciocínio de Rubem Alves. Por isso digo novamente: Como teólogo Rubem Alves é um excelente cronista!
Obviamente que assim como a música a vida tem um fim, entanto, a duração da sua existência é determinada não por ela própria nem pelo seu semelhante, mas sim por aquele que a criou: o Grande Autor.
“Toda a carne é erva, e toda a sua glória como a flor da erva; seca-se a erva, e caem as flores, soprando nelas o hálito do SENHOR. Na verdade o povo é erva; seca-se a erva, e cai a sua flor, mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente.” Isaías 40. 5 a 8.
Deixe um comentário